Estudante e cabeleireira narram como é ser mulher em corpos de homens. "O sexo não pode ser reduzido à genitália", avalia pesquisador da UFBA.
“Uma mulher aprisionada em um corpo de homem”, é assim que se sente a universitária Jeane Louise, 19 anos, estudante do 5° semestre de publicidade, em Salvador. Transexual, assim como muitas outras, quer entrar na fila do SUS para realizar cirurgia de mudança de sexo, processo final da reconstrução de sua estética feminina, iniciada ainda na infância.
“Chega um momento em que sua verdade é muito forte, é questão de alma. Nas brincadeiras de infância, minhas personagens eram sempre do gênero feminino, me refugiava ali. Depois veio a blusa, o cabelo, a calça apertada, o furo na orelha. Em geral, nenhuma transexual sabe que é transexual, é um processo de conhecimento, de acesso à informação”, afirma.
O enfrentamento das pessoas que nasceram homens, mas assumem papéis sociais femininos e lutam para serem reconhecidas pela maioria é vivido por transexuais como Jeane, que remonta a forma física através de hormônios, silicone, implante capilar e outros paliativos como a maquiagem. Mas o desejo de formalizar a transexualização, para ela, só será completa com a alteração do órgão sexual, que pode ser conquistada por meio da cirurgia de transgenitalização, instituída no Brasil em 2008 com a Portaria de número 457, do Ministério da Saúde. Atualmente, a cirurgia é autorizada apenas em quatro hospitais universitários: um da UFRG, Porto Alegre; um da UERJ, Rio de Janeiro; um da USP, em São Paulo; e o da UFG, em Goiás.
Cento e dezesseis brasileiras já passaram pelo procedimento, que consiste na amputação do pênis e construção da neovagina. É preciso, antes, que a mulher transexual passe por etapas preparatórias, que preveem avaliações psicológicas e psiquiátricas, terapia hormonal, avaliação genética e acompanhamento pós-operatório, conforme especifica o Ministério.
“Vou concluir o primeiro ano de terapia, a fila é enorme e esse trâmite é muito sofredor. Temos que ser guerreiras para conquistar espaço. Mas sei que vou me sentir realizada. Hoje, quando me olho no espelho, me vejo incompleta, com aquilo que não condiz à minha mente. Ser mulher ou homem está na mente, não é a aparência física”, avalia a estudante.
Jeane Louise encarou cedo o autoconhecimento e aceitação, mesmo em meio ao coro de “viadinho” que diz ter sido bastante emitido pelos colegas no período em que esteve em uma "escola de padres".
“Eu realmente 'metia a mão' neles e ia para a diretoria. Se continuasse ali, iria entrar em depressão, porque eu chegava no colégio, colocava maquiagem e me mandavam tirar. Era horrível! Pensava: se não puder usar em casa ou no colégio, onde iria usar? Saí de lá, fui para uma escola pública e foi lá que me encontrei de verdade como mulher; o pessoal tinha a cabeça mais aberta”, lembra.
Jeane mora com a mãe - os pais são separados - e diz que sabe diferenciar o respeito da aceitação. "Minha mãe teve um filho e até hoje ela não me chama de Jeane dentro de casa. Meu pai era muito machista e me surpreendo com o respeito que me trata. Não digo que me aceitam, mas respeitam e isso já dá força. Faço tudo com os pés no chão”, comenta.
Filha de sargento
A cabeleireira Luana Neves* também luta pela conquista plena de pertencer ao gênero, porém há mais tempo, desde os 18 anos, quando saiu de Mato Grosso do Sul para morar na capital baiana. Neste período, compreendeu que, para ela, mais importante que o processo de transgenitalização seria a retificação jurídica do nome civil. “Tenho convicção de que quero fazer a cirurgia, mas meu principal desejo é o da retificação do nome. Eu evito ir a hospital, banco, fico muito arrasada em relação a isso, porque estou vestida de mulher, mas as pessoas me chamam com meu nome de batismo, não o social, por puro preconceito”, afirma. O projeto de lei 72/07, do deputado Luciano Zica (PV), que prevê a alteração do nome civil para o social nas disposições da Lei dos Registros Públicos (Lei n° 6.015/1973), tramita no Senado e, atualmente, aguarda a designação do relator.
Filha de sargento do Exército, um dos grandes sonhos de Luana, já tentado e descartado, era o de seguir a carreira militar. Chegou a se alistar, passou em todos os testes, inclusive o psicológico e o de aptidão física, experimentou a roupa no quartel. Até que não resistiu ao incômodo do ambiente e confessou ao general a sua orientação sexual.
“Eu tinha no sangue a vontade de seguir carreira na área militar, sempre tive esse sonho, mas, naquela época, me senti muito mal. Estava prestes a assumir uma personalidade que não era a minha”, afirma.
Por vontade, revela que gostaria de ser advogada, no entanto, conta que precisou se condicionar à restrição do mercado de trabalho às transexuais e que é cabelereira não por opção, mas por maior aceitação.
“Quando meus pais saíam de casa, eu colocava a roupa de minha mãe, salto, toalha na cabeça, para fingir que tinha cabelo. Quando a percebia já no portão, jogava tudo aquilo embaixo da cama. Mas eu não sabia em que perfil me encaixava, se era travesti, transexual, drag queen. Eu sempre fui muito fechada e tímida, o que me causou depressão. Eu colocava meus esforços todos no estudo, achava que tinha que estudar para ser uma pessoa de poder”, relembra. Hoje, saias e vestidos, sempre "discretos", são as roupas que mais usa. Já na praia, não abdica de biquínis e cangas.
Ser transexual
O professor e membro do grupo Cultura e Sexualidade, da UFBA, Leandro Colling, explica que, para ser transexual, não é preciso concretizar a mudança do sexo necessariamente com cirurgia. “Existem casos em que a pessoa se identifica como transexual e não deseja fazer a completa mudança no corpo. Tem gente que se sente transexual e basta colocar seio, tomar hormônios, para não deixar crescer pêlos; o pênis é o que menos importa. O sexo não pode ser reduzido à genitália, tem a diversidade”, aponta.
Colling, que também é membro do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, órgão do governo federal, explica que categorias como homem ou mulher não devem ser tão rígidas na sociedade. “As pessoas têm ideias fixas nas suas cabeças, mas, se você olhar para a vida, os homens e as mulheres estão cada vez mais borrando essas fronteiras, desde profissões, gestos, produtos, depilação”, relata.
A autoestima das transexuais é trabalhada no processo terapêutico, de modo que elas possam enfrentar os entraves culturais, como argumenta a psicanalista Suzana Vieira, 46 anos. Segundo ela, existe uma tendência dessas mulheres ao isolamento e à depressão, que pode ser agravada pela falta de apoio das famílias. “As sensações começam desde a infância e, desde então, as pessoas a veem como um menino, ela também se vê fisicamente como menino, mas lida com desejos de menina e começa a esconder os órgãos sexuais. A terapia ajuda a pessoa a entender tudo isso”, ressalva a psicanalista.
Relação com héteros
Por serem socialmente mulheres, as solteiras Jeane e Luana se relacionam com homens e hoje se afirmam heterossexuais. “Eu dou até risada com alguns homens desavisados. Às vezes você já está em um nível de envolvimento e aí tenho que explicar que sou transexual. Tem alguns que não gostam. Me considero realmente hétero”, comenta. “Gosto de homem que gosta de mulher, apesar de ser complicado porque nem todo mundo tem coragem de assumir uma transexual”, ressalva Jeane.
Leandro Colling explica que o gênero não se confunde com a prática sexual. “Ser gay é outra coisa. Existem vários homens que transam com outros e a identidade é heterossexual, a gente precisa respeitar isso. A prática sexual não é um elemento definidor de identidade. Se pessoas se sentem mulheres e transam com homens esse sexo é heterossexual”, acrescenta.
*Optou-se, na matéria, por usar os nomes sociais das transexuais.
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