segunda-feira, 5 de março de 2012

"Transexualidade e o Direito de Casar", por Maria Berenice Dias*



Publicado na Agência LGBT 

As questões que dizem com a sexualidade sempre são cercadas de mitos e tabus. Os chamados desvios sexuais, tidos como uma afronta à moral e aos bons costumes, são alvo de profunda rejeição social. Tal conservadorismo acaba por inibir o próprio legislador de normar situações que fogem dos padrões comportamentais aceitos pela sociedade. 

No entanto, fechar os olhos à realidade não vai fazê-la desaparecer, e a omissão legal acaba tão-só fomentando ainda mais a discriminação e o preconceito. 

Estar à margem da lei não significa ser desprovido de direito nem pode impedir a busca do seu reconhecimento na Justiça. Ainda quando o direito se encontra envolto em uma auréola de preconceito, o juiz não deve ter medo de fazer justiça. A função judicial é assegurar direitos, e não bani-los pelo simples fato de determinadas posturas se afastarem do que se convencionou chamar de normal. 

Talvez uma das mais instigantes questões que estão a merecer regulamentação para adentrar na esfera jurídica é a que diz com o fenômeno nominado de transexualidade. Por envolver a própria inserção do indivíduo no contexto social, reflete-se na questão da identidade e diz com o direito da personalidade, que tem proteção constitucional. 

A identificação do sexo é feita no momento do nascimento pelos caracteres anatômicos, registrando-se o indivíduo como pertencente a um ou a outro sexo exclusivamente pela genitália exterior. No entanto, a determinação do gênero não decorre exclusivamente das características anatômicas, não se podendo mais considerar o conceito de sexo fora de uma apreciação plurivetorial, resultante de fatores genéticos, somáticos, psicológicos e sociais.[1] 

Eventual incoincidência entre o sexo aparente e o psicológico gera problemas de diversas ordens. Além de um severo conflito individual, há repercussões nas áreas médica e jurídica, pois o transexual tem a sensação de que a biologia se equivocou com ele.[2] Ainda que o transexual reúna em seu corpo todos os atributos físicos de um dos sexos, seu psiquismo pende, irresistivelmente, ao sexo oposto. Mesmo sendo biologicamente normal, nutre um profundo inconformismo com o sexo anatômico e intenso desejo de modificá-lo, o que leva à busca de adequação da externalidade de seu corpo à sua alma. 

Com a evolução das técnicas cirúrgicas, tornou-se possível mudar a morfologia sexual externa, meio que começou a ser utilizado para encontrar a equiparação da aparência ao gênero com que se identifica. Dito avanço no campo médico, entretanto, não foi acompanhado pela legislação, uma vez que nenhuma previsão legal existia a regular a realização da cirurgia. Essa omissão levava a classe médica a uma problemática ético-jurídica e a questionamentos sobre a natureza das intervenções cirúrgicas e a possibilidade de sua realização. 

O IV Congresso Brasileiro de Medicina Legal, realizado em São Paulo no ano de 1974, classificou como mutilante – e não como corretiva – a cirurgia para troca de sexo. Tipificada como lesão, sob o ponto de vista penal, a conclusão a que se chegou foi que a intervenção feria o Código de Ética Médica. 

Alcançou grande repercussão a condenação do cirurgião plástico Roberto Farina à pena de dois anos de reclusão por infringência ao art. 129, § 2º, do Código Penal. Acabou processado, porque, no XV Congresso de Urologia realizado em 1975, exibiu um filme de uma cirurgia de reversão, referindo que já a havia realizado em nove pacientes. O lúcido parecer exarado pelo jurista Heleno Cláudio Fragoso[3] entendeu que o réu atuou dentro dos limites do exercício regular do direito (art. 23, III, do CP), não praticando crime algum. Afirmou que a condenação revela data venia a carga de reprovação moral própria do espírito conservador de certos magistrados. O Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, em 06/11/1979, acabou por absolver o acusado, por decisão majoritária, assim ementada: Não age dolosamente o médico que, através de cirurgia, faz a ablação de órgãos genitais externos de transexual, procurando curá-lo ou reduzir seu sofrimento físico ou mental. Semelhante cirurgia não é vedada pela lei, nem pelo Código de Ética Médica. 

Em face desse precedente e das restrições da classe médica, os interessados em se submeter à cirurgia passaram ou a buscar outros países para sua realização ou a se socorrer da via judicial, pleiteando a expedição de alvará, por meio de procedimento de jurisdição voluntária. 

Só recentemente, por intermédio da Resolução nº 1.482, de 10/9/1997, o Conselho Federal de Medicina autorizou, a título experimental, a cirurgia de transexuais. Considerando ser o paciente portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo, foi reconhecido que a transformação é terapêutica e, não havendo lei que a defina como crime, inexiste afronta à ética médica. 

Após a realização da cirurgia, que extirpa os órgãos genitais aparentes, adaptando o sexo anatômico à identidade psicossocial, questão de outra ordem se apresenta. Inquestionavelmente é aflitiva a situação de quem, com características de um sexo, tem sua documentação declarando-o como pertencente ao gênero corporal em que foi registrado, o que gera constrangimentos de toda ordem. Daí a busca de alteração do nome e da identificação do sexo no registro civil. A inexistência de via administrativa ou previsão legislativa leva, com freqüência, a aflorar na Vara dos Registros Públicos procedimentos pleiteando a retificação. 

No entanto, o sistema jurídico brasileiro consagra o princípio da imutabilidade do nome, não chancelando qualquer pretensão do transexual à mudança do prenome. A Lei dos Registros Públicos diz que o prenome só pode ser alterado quando expuser ao ridículo o seu portador,[4] sendo admitida a alteração somente a pedido do interessado, contanto que não prejudique o sobrenome da família.[5] 

Outra objeção que é suscitada para impedir a mudança decorre da vedação do art. 348 do Código Civil: Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.[6] Esse é o fundamento que leva a Justiça, muito freqüentemente, a indeferir o pedido de retificação. No entanto, como não é alegada a ocorrência de erro no registro, outro deve ser o fundamento para embasar a pretensão. Não se trata de mero pedido de retificação de registro, e sim de alteração do estado individual, que diz com a inserção do sujeito na categoria correspondente à sua identidade sexual. Assim, a ação deve ser proposta perante a Vara de Família, como sustenta José Maria Leoni Lopes de Oliveira.[7] Decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro fixou a competência da Vara de Família para a ação que mais se notabilizou sobre o tema, conhecida como o caso Roberta Close. O pedido, no entanto, foi denegado. 

Mesmo frente às limitações e restrições legais, vem a Justiça decidindo favoravelmente, sendo autorizada a alteração tanto do nome como do sexo, sob o fundamento de que nada mais razoável, humano e justo, que se agrupe o indivíduo no gênero sexual que melhor se identifique, maior conforto e conveniência lhe traga, constituindo-se tudo isto num direito subjetivo seu.[8] 

Quando dos julgamentos, não é feita qualquer referência sobre a possibilidade ou não da ocorrência de casamento. Por evidente que não é difícil figurar a hipótese de alguém que, desconhecendo a condição de transexual de seu parceiro, tendo-o como pertencente ao sexo registral, venha com ele a contrair matrimônio. Por tal, merece questionar-se sobre a existência do casamento e sua higidez, bem como se o ato pode ser anulado sob o fundamento de haver ocorrido erro essencial sobre a pessoa ou mesmo fraude, inclusive porque, com a cirurgia de reversão, ocorre a esterilidade. 

A primeira pergunta que se impõe é se a cirurgia possui o efeito de mudar o sexo, isto é, se transforma efetivamente o homem em mulher ou a mulher em homem. Sendo a resposta afirmativa, nenhuma dúvida pairaria sobre a existência, a validade e a higidez do casamento, e, por conseqüência, desnecessária qualquer regulamentação à espécie. Porém, a resposta só pode ser negativa. A cirurgia, ainda que modifique as características anatômicas, orgânicas e aparentes do sexo, não altera o código genético do indivíduo, que corresponde às características do sexo cromossomático. Não haveria a transformação da situação biológica, mas exclusivamente a tentativa de correção de uma inaptidão psicológica. Não haveria inversão da natureza, mas mudança de uma forma de viver.[9] 

Tereza Rodrigues Vieira sustenta a possibilidade e a validade do casamento. Ainda que tenha por legalmente inexistente o casamento entre dois homens, ressalva a hipótese do casamento de um transexual, que já tenha obtido o reconhecimento judicial de sua condição feminina.[10] 

Decisão inédita do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul[11] faz expressa referência à possibilidade do casamento. Esse precedente, de uma vez por todas, indica a solução que se afigura mais justa e correta, pois nada justifica subtrair do transexual o direito de casar. O único reparo que merece a corajosa decisão é a determinação de inserir à margem do registro que se trata de um transexual, concedendo a possibilidade de ser expedida certidão de inteiro teor a requerimento da parte e/ou de terceiro, que responderá pelos abusos que cometer. 

Descabe argumentar que registro público possui efeito constitutivo, servindo para provar a existência e a veracidade do que está consignado. Não há como tornar pública a alteração registral levada a efeito e acessível ao conhecimento de todos.[12] Mesmo que qualquer alteração posterior deva ser obrigatoriamente mencionada, sob pena de responsabilidade civil e penal do serventuário, conforme expressamente preconiza a Lei dos Registros Públicos,[13] tal regra não pode ensejar infringência ao sagrado princípio de respeito à privacidade e à identidade pessoal. Integra o restrito campo do livre arbítrio de todo e qualquer indivíduo o direito de revelar ou ocultar seu sexo real, o sexo com o qual se identifica, o sexo pelo qual optou. Entre os dois princípios, possui mais relevância o que diz com o direito à identidade, devendo ser o prevalentemente preservado. 

Cabe a advertência feita por Tereza Rodrigues Vieira: Não deve o legislador intervir, entretanto o transexual que dissimulou sua condição deverá responder por sua omissão.[14] A questão de o pós-operado dar ciência ao parceiro da cirurgia a que se submeteu pode ter implicações éticas e legais. Mesmo na hipótese de nada haver revelado, a dar margem a pedido de anulação ou divórcio, podendo o enlace ser tido como fraudulento, nada justifica a violação do direito à privacidade. 

A indispensabilidade de proteger o direito à identidade impõe também tutela à modificação levada a efeito, tanto no campo físico como na esfera judicial. Despiciendo proceder à alteração registral se restar desnudada a causa da alteração. Permanecerá sendo impedida a pessoa do direito de viver sem sujeitar-se a situações que firam sua dignidade. 

Não se pode negar, por uma questão de coerência, que é chegado o momento de reconhecer que o casamento é possível. Por maiores que possam ser os preconceitos, por mais acaloradas que sejam as discussões e as controvérsias que se travam sobre o tema, essa é a única solução que não afronta as garantias e os direitos individuais constitucionalmente assegurados. 

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[1] CHAVES, Antonio. Direito à Vida e ao Próprio Corpo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 33.
[2] MORICI, Silvia. Homossexualidade: um Lugar na História da Intolerância Social, um Lugar na Clínica. in Homossexualidade. Formulações Psicanalíticas Atuais. Porto Alegre: Artmed. 1998. p. 169. 
[3] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Transexualismo . Revista dos Tribunais, v. 543, pp. 299-304. 
[4] Art. 58 da Lei nº 6.015/73. 
[5] Art. 56 da Lei nº 6.015/73. 
[6] A referência é ao CC de 1916, estando reproduzido no art. 1.604 do atual CC. 
[7] OLIVEIRA, José Maria Leoni Lopes de. Direitos da Personalidade: Mudança de Sexo e Clonagem Humana, p. 15. 
[8] Sentença do Juiz José Fernandes de Lemos da Vara de Família de Recife, Pernambuco, proferida em 21/4/1989, disponível na íntegra em minha obra “União Homossexual, o preconceito e a Justiça”. Livraria do Advogado, 1ª ed. 2000. .
[9] SALGADO. Murilo Rezende. O Transexual e a Cirurgia para a Pretendida Mudança de Sexo. Revista dos Tribunais, v. 491, 1976, p. 244. 
[10] VIEIRA, Tereza Rodrigues. O Casamento entre Pessoas do mesmo Sexo no Direito Brasileiro e no Direito Comparado. Repertório IOB de Jurisprudência, n. 14/96, p. 255, jul. 1996. 
[11] Ap. Cível nº 598 404 887, Relator o Des. Eliseu Gomes Torres, julgamento em 10.3.1999. 
[12] Art. 17 da Lei nº 6.015/73: Qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido. 
[13] Art. 21 da Lei nº 6.015/73: Sempre que houver qualquer alteração posterior ao ato cuja certidão é pedida, deve o oficial mencioná-la, obrigatoriamente, não obstante as especificações do pedido, sob pena de responsabilidade civil e penal, ressalvado o disposto nos arts. 45 e 94. 
[14] VIEIRA, Tereza Rodrigues. Direito à Adequação de Sexo do Transexual. Repertório IOB de Jurisprudência. N. 3/96, p. 48, fev. 1996. 

* Maria Berenice Dias é advogada especializada em Direito de Famílias, Sucessões e Direito Homoafetivo. É Presidenta da Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB. Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e atualmente é Vice-Presidenta do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito das Famílias. 

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